Corrente elétrica: Evoluções e desafios de uma unidade de base do Sistema Internacional
O ampere é uma unidade de extrema importância com diversas aplicações práticas, inclusive no setor das telecomunicações. No entanto, a definição da unidade de corrente elétrica apresenta desafios técnicos e a validade da Lei de Ohm em escalas extremamente pequenas ainda é incerta. Apesar dos avanços na ciência e na metrologia, há desafios a serem superados, como o aprimoramento de métodos de medição e a busca pela harmonização das medidas de corrente elétrica.
Fabrício Gonçalves Torres, pesquisador do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo
A corrente elétrica é uma grandeza de extrema importância, com diversas aplicações. Em residências, comércios e indústrias, os medidores de energia (wattímetros) realizam a medição do consumo de energia (geralmente em kWh) com base na corrente elétrica que flui pelo aparelho.
Um exemplo prático é o eletroímã, um dispositivo amplamente utilizado em motores, campainhas e telefones. Ao passar corrente elétrica pelas espiras de uma bobina, ela gera um campo magnético, comportando-se como um ímã. Uma vantagem é que é possível controlar a intensidade de atração em materiais ferromagnéticos ajustando o valor da corrente elétrica.
Diversos profissionais das telecomunicações realizam medidas de corrente elétrica em diversas ocasiões, como para estimar o consumo de energia de dispositivos e avaliar a eficiência energética de produtos de telecomunicações, ou para medir a propagação de campo eletromagnético de antenas. A corrente elétrica também possui uma relação indireta com as medidas de potência em radiofrequência (RF), frequentemente expressas por meio de unidades logarítmicas, como dB, dBm, dBµW, entre outras.
Todavia, a corrente elétrica não é somente especial devido às suas aplicações práticas. A sua unidade de medida, o ampere (A), foi considerada como uma das sete grandezas de base do SI – Sistema Internacional (tabela 1).
Tab. 1 – Unidades de base do sistema Internacional
Unidade de base | |
Nome | Símbolo |
Metro | m |
Kilograma | kg |
Segundo | s |
Ampere | A |
Kelvin | K |
Mol | mol |
Candela | cd |
No SI, as unidades são classificadas em duas categorias: unidades de base e unidades derivadas. De acordo com o SI, as definições de cada unidade de base são elaboradas cuidadosamente para garantir sua singularidade e fornecer um sólido embasamento teórico, permitindo medições mais exatas e reprodutivas. Por outro lado, as unidades derivadas podem ser expressas em termos das unidades de base por meio de equações.
No entanto, a ciência está em constante evolução e longe de ser perfeita. À medida que o conhecimento e a tecnologia avançam, as definições das unidades de base também evoluem ao longo do tempo. Um exemplo comum dessa evolução é a unidade de comprimento, o metro. Inicialmente, em 1889, o metro era baseado em um protótipo internacional de uma liga metálica de platina-irídio, mas ao longo da história, sua definição foi revisada até chegar à definição atual: O metro é o comprimento percorrido pela luz no vácuo durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 de segundo. Assim, a definição do metro, documentada no Mise em pratique do Bureau Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), estabelece o metro com base em uma constante universal (velocidade da luz) e em outra unidade de base (o segundo).
No caso do ampere, a situação se complica um pouco mais. Até 1919, sua definição era baseada na experiência realizada por André-Marie Ampere há duzentos anos:
O ampere é a corrente constante que, se mantida em dois condutores paralelos de comprimento infinito, de secção transversal desprezível, e colocados a 1 metro de distância no vácuo, produziria entre estes condutores uma força igual a 2 x 10-7 newton por metro de comprimento.
Contudo, essa definição não estava em conformidade com o que o próprio SI preconiza. Segundo o SI, “a realização da definição de uma unidade é o procedimento segundo o qual a definição da unidade pode ser utilizada a fim de estabelecer o valor e a incerteza associada de uma grandeza de mesmo tipo que a unidade”. Em outras palavras, embora a definição do ampere tenha sido aceita em 1908, ela não foi aplicada na prática devido à enorme dificuldade em implementá-la.
No lugar disso, foi adotado como padrão um dispositivo conhecido como voltímetro de prata, que geralmente era calibrado utilizando pilhas químicas, como as células de Weston (Figura 1). Essas pilhas foram posteriormente substituídas por pilhas eletrônicas, que são mais estáveis e robustas (Figura 2).
No momento atual, o método primário mais exato para a medição do ampere não é obtido por meio das pilhas eletrônicas, mas sim com base na Lei de Ohm, que relaciona a corrente elétrica a dois fenômenos quânticos: o efeito Josephson, para medição da tensão elétrica, e o efeito Hall Quântico, para medição da resistência elétrica. Observa-se, portanto, que, para o ampere, que é uma unidade de base do SI, a lógica é invertida, uma vez que são utilizadas unidades derivadas (tensão e resistência) para se obter a unidade de base, uma vez que sua definição, baseada na experiência de Ampère, não é realizada na prática.
Com o intuito de lidar com essa questão, em 20 de maio de 2019, a nova revisão do SI apresentou uma nova definição para essa unidade:
O ampere, símbolo A, é a unidade de corrente elétrica. Sua magnitude é definida fixando o valor numérico da carga elementar em exatamente 1,602176634 x 10-19 quando expressa na unidade As (ampere segundo), que é igual a C.
Entretanto, a nova definição não simplifica a realização da unidade ampere. Sua implementação ainda demanda um considerável avanço tecnológico. Além disso, a Lei de Ohm é uma lei empírica que se mostra eficaz em aplicações com incertezas de medição na ordem de algumas partes em 10 milhões, porém não se tem certeza se essa lei é válida em todas as situações, como em escalas atômicas ou subatômicas, por exemplo.
A partir do exposto, é evidente que, embora a ciência e a metrologia tenham progredido significativamente e possamos desfrutar dos benefícios desses avanços, ainda há inúmeros desafios a serem enfrentados no futuro. Um desses desafios inclui o aprimoramento de métodos de medição especialmente em escalas extremamente pequenas, como na nanotecnologia. Além disso, novos campos de pesquisa, como a computação quântica, demandam o desenvolvimento de métodos de medição mais exatos. A harmonização internacional das medidas de corrente elétrica também se destaca como desafio, visando a consistência, a comparabilidade e a aplicação de medidas em diferentes setores e países.
Fabrício Gonçalves Torres é físico, mestre em Processos Industriais e responsável pela área de Alta Frequência e Telecomunicações do Laboratório de Metrologia Elétrica do IPT. Possui mais de 17 anos de experiência em metrologia e realiza auditorias, consultorias e treinamentos na área de qualidade, metrologia e instrumentação.
fabrigt@ipt.br
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